Pensatempo: abril 2012

terça-feira, 3 de abril de 2012

Crimes sem castigo na construção da “maior fábrica de celulose do mundo” em Três Lagoas-MS


Com R$ 2,7 bilhões do BNDES, empresa Eldorado demite cipeiros e usa policiais para espancar e intimidar operários

Leonardo Severo, de Três Lagoas-MS

R$ 2,7 bilhões do BNDES, recursos públicos, da sociedade brasileira, estão financiando o crime na cidade de Três Lagoas, no interior do Mato Grosso do Sul. Para a construção da “maior fábrica de celulose do mundo”, que enfrenta nestes dias a sua quarta paralisação, a empresa Eldorado se utiliza de métodos medievais. Literalmente.

Seguindo a risca a cartilha deixada por um dos idealizadores do empreendimento, Mário Celso Lopes – já denunciado pela exploração de trabalho escravo -, a Eldorado faz bom uso da impunidade para catapultar seus lucros. Suas ações vão desde a demissão sumária de cipeiros até a utilização de policiais militares com farda e sem farda para reprimir manifestações, espancar operários, montar listas “negras” e até mesmo ameaçar de morte lideranças sindicais. 

Isso explica porque, de forma simples e altiva, milhares de trabalhadores da Eldorado, de suas empresas terceirizadas e quarteirizadas, estão dizendo não. Que não aceitam mais tomar a água pestilenta retirada da lagoa pelos mesmos caminhões que carregam esgoto. Que não aceitam mais viver em alojamentos superlotados com problemas de lixo, inundação e insetos. Que não aceitam trabalhar sem receber. Que não aceitam que os acordos sejam solenemente descumpridos. Que exigem equiparação salarial entre as empresas e os mais de 200 CNPJs utilizados para precarizar as relações de trabalho, ludibriando a lei e o direito. Que são homens e não aceitam ser tratados como animais.

Há partes desta história que seriam cômicas, senão fossem trágicas. Entre tantas barbaridades denunciadas ao Ministério Público do Trabalho está a de que “fora prometido, na contratação, que os trabalhadores seriam dispensados para as festas de final de ano no dia 22 de dezembro e que voltariam no quinto dia útil de janeiro. Agora a empresa ‘exige’ que trabalhem normalmente durante o final de ano, prometendo em troca um show da Mulher Melancia”. Infelizmente foi isso o que aconteceu com pessoas que precisam de dias para se deslocar milhares de quilômetros até seus lares. O show encontra-se no youtube.

DOIS HOMENS, DOIS CIPEIROS, DOIS EXEMPLOS

Luiz Carlos de Barros Sales, de 50 anos, e José da Conceição dos Santos Júnior, operários da construção e membros eleitos da CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) foram demitidos sumariamente da Paranasa Engenharia, subcontratada da Eldorado, após serem acusados de “liderar movimento grevista”.

Eleito em 11 de outubro para a Cipa, Luiz Carlos lembra que, mesmo sendo trabalhador dedicado, foi mandado embora “como um qualquer, sem satisfação nenhuma”. “Minha intimação chegou no sábado, 28 de janeiro. Foi recebida pela minha filha de 15 anos, que estava acompanhada por uma menina de 8 anos. Ela me ligou e disse: Pai, tem um monte de camburão aqui e os policiais estão armados até os dentes, acompanhados de um oficial de justiça. No que foi que o senhor se meteu?”. O questionamento da filha era mais do que procedente. Conforme os vizinhos, eram muitos policiais e cinco viaturas: três da Polícia Militar e duas da Polícia Civil.

DIGNIDADE MULTADA

E o que dizia a intimação? Obrigava os cipeiros Luiz Carlos e José da Conceição, bem como outros trabalhadores identificados como “instigadores” da mobilização por direitos, a pagar uma multa diária de R$ 2.000,00 (dois mil reais), durante um máximo de cem dias, caso não obedecessem a ordem assinada pelo juiz Tomás Bawden de Castro Silva. “Fiquei louco”, relata Luiz Carlos. “Afinal, onde é que eu ia arrumar duzentos mil reais?”. Sobre os motivos que levaram à organização do protesto, explica:  “foi o deslocamento a pé até o local do almoço, pois era o segundo dia que o ônibus não vinha e tínhamos de caminhar dois quilômetros para ir e dois para voltar ao trabalho”. “A isso se somou o fato de que muitas horas extras não eram pagas, que descontavam faltas sem termos faltado, e de que o pagamento era sempre uma surpresa, pois o holerite não correspondia à realidade”, frisou.

Se no caso de Luiz Carlos a intimação foi recebida pela filha menor de idade, na casa de José da Conceição recaiu sobre a tia analfabeta, visivelmente constrangida pelo desconhecimento do teor daquele papel somado ao forte aparato policial.

“Seis horas da manhã me ligaram. Sai que a polícia está indo atrás de você. Vim do Nordeste para morar na casa da minha tia, que mora aqui há mais de 30 anos. Ela criou quatro filhos e nunca havia tido este tipo de desgosto. Parecia que era eu o bandido e não a empresa que trata os trabalhadores de forma desumana”. De acordo com José da Conceição, “o movimento só ocorreu porque fomos obrigados a caminhar quatro quilômetros, após termos ficado sem ônibus, tendo apenas uma hora de almoço e voltar a trabalhar de novo. Quisemos conversar e eles trancaram a porta. O pessoal fez greve”.

Nas mobilizações, denunciou, “tiros atingiram as pernas e as costas dos trabalhadores. Um foi atingido na cabeça. Teve gente internada. Nos trataram como bandidos”. E concluiu: “o tratamento dado pela Eldorado é desumano”.

A advogada Jackeline Torres de Lima afirma que a demissão dos cipeiros é uma conduta “totalmente ilegal”, que agride a Constituição. “Eu disse para a empresa que não podia demitir cipeiro, mas eles disseram que não adianta, que não iam reintegrar. Então, a única maneira é buscar uma reparação material. Mexendo no bolso, com uma boa indenização, talvez as empresas tomem consciência”. Infelizmente, acrescentou, esta é a realidade de muitos operários na localidade: “trabalham  dez, doze horas por dia, sem o pagamento de horas extras, com salário atrasado, e os alojamentos em péssimas condições”.

Jackeline destacou a “responsabilidade da Eldorado, pois o projeto é dela”. Questionada sobre a existência de mais de 200 CNPJs dentro do empreendimento, a advogada denuncia que esta é uma forma encontrada pelas empresas subcontratadas pela Eldorado para que o trabalhador não consiga resgatar o dinheiro a que tem direito na rescisão contratual.

Para Webergton Sudário da Silva (Corumbá), presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário do MS (Fetricom), a Eldorado extrapolou todos os limites possíveis e imagináveis da ilegalidade, confiando na impunidade e na morosidade da Justiça. “Isso precisa ter um fim. Temos um compromisso nacional da construção assinado por governo, empresários e trabalhadores, mas que continua sendo desrespeitado. No caso da Eldorado o desrespeito vai além, agride a legislação, a Constituição, usam e abusam da força para impor as suas vontades. Defendemos que o governo atue, fiscalize a autue, pois o tratamento dispensado aos trabalhadores é de escravos modernos. Não vamos aceitar tamanha truculência e desumanidade”, declarou.

Membro da executiva da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e da Madeira (Conticom/CUT), Valdemir Oliveira (Popó), salientou que é inadmissível que grandes empreendimentos como o da Eldorado continuem sendo turbinados com recursos públicos sem que haja contrapartidas sociais bastante claras. “Desde o início dos megaempreendimentos a Conticom tem batido nesta tecla: contrapartidas sociais. Além disso, temos defendido um contrato coletivo nacional com equiparação salarial entre as regiões, com pisos salariais decentes e à altura do volume de recursos que as empresas estão ganhando. Também reivindicamos um patamar mínimo de direitos. Nossas mobilizações e paralisações são para que sejamos ouvidos. As greves são o eco do nosso protesto e da nossa indignação”, concluiu.

domingo, 1 de abril de 2012

Tribunal da Terra do MS denuncia violência contra indígenas, cobra reforma agrária e democratização da comunicação

Lancei o Latifúndio Midiota na UFMS, em Campo Grande
Com a participação de representações indígenas, quilombolas, do MST, da CUT e de inúmeras entidades do movimento social e sindical, o Tribunal da Terra do Mato Grosso do Sul encerrou neste domingo com uma enérgica conclamação em defesa da reforma agrária, dos direitos humanos e da democratização da comunicação. Os “jurados” concluíram com uma denúncia contundente do “aumento da participação das corporações do agronegócio e de companhias multinacionais, que se apoderam em ritmo acelerado de nosso território e recursos naturais”.

De acordo com o secretário geral da CUT-MS, Alexandre Costa Júnior, com apoio dos mais expressivos setores do movimento popular do Estado, o Tribunal elevou o tom contra a extrema concentração agrária, que tem vitaminado agressões e desmandos contra os trabalhadores rurais sem terra e os indígenas. “É preciso denunciar a violência criminosa do latifúndio e a violência silenciosa da mídia, que atuam coordenados”, frisou o dirigente cutista. 

Alexandre lembrou que no caso de Três Lagoas, a cultura da impunidade e os abusos se estendem até os operários da construção civil, com inúmeras práticas antissindicais das empresas responsáveis por erguer na cidade a “maior fábrica de celulose do mundo”.

Conforme denúncias do Sindicato dos Trabalhadores da Montagem Industrial de Três Lagoas, estas “construtoras” têm contratado serviços de “segurança” – vinculados a policiais locais – que se comportam como jagunços para intimidar os dirigentes, a fim de que coonestem e calem frente à política de arrocho e precarização mantida nos canteiros.

Apesar de que o grosso das execuções acontece no campo - nos últimos nove anos, foram mais de 250 indígenas assassinados no Estado – as cidades acabam respirando o cadáver pestilento do crime e da impunidade. E inúmeros combatentes do movimento sindical e social também têm tombado. 

CRIMES

Naiara sobreviveu a um atentado em Miranda
No dia 17 de novembro de 2011 foi assassinado em frente aos filhos, o cacique Nísio Gomes, líder kaiowá-guarani, no acampamento Tekoha Guaviry, na BR-386, entre Amambaí e Ponta Porã. O relato de um dos filhos ao Tribunal foi claro: morto, pois ficaram marcas da quantidade de sangue perdido, o corpo foi levado pelos jagunços. Dois dias antes, nada menos do que 40 homens armados haviam invadido o local em suas Hilux e S-10 à procura do cacique. A assembleia máxima dos kaiowá-guarani, o Conselho Aty Guasu, denunciou o assassinato, mas após um saque do auxílio benefício de Nísio em Brasília, de forma ridícula, a polícia suspendeu as buscas e ainda indiciou o filho do cacique que denunciou o ataque por falso testemunho.

O fogo queimou as duas pernas de Naiara
Outro caso chocante aconteceu no dia 3 de junho do ano passado, na Aldeia Cachoeirinha, onde cerca de oito mil índios vivem em apenas dois mil hectares, a oito quilômetros de Miranda, a 203 quilômetros de Campo Grande. Eles reivindicam 36 mil hectares tomados por latifundiários da região. A própria aldeia virou uma ilha, cercada pelas fazendas.

Pois eram 22 horas e 40 minutos quando um ônibus escolar que retornava com 40 alunos indígenas para a aldeia foi alvejado por marginais que lançaram um coquetel molotov. Resultado: cinco alunos gravemente queimados, além do motorista. Uma das estudantes, Lurdesvoni Pires, de 28 anos, mãe de três filhas, faleceu com 97% do corpo queimado. Conversei com uma das sobreviventes, Naiara Francisco Vitor, carinhosamente chamada de Binha. Hoje com 19 anos, ela sonhava com o curso de Direito e se empenhava trabalhando de dia e estudando a noite para seguir em frente. “Aquela garrafa cheia de gasolina foi o fim para a minha amiga e complicou ainda mais a vida de todos nós. Não consigo ficar em pé por muito tempo. As pernas doem muito. São agulhadas fortes, pinicam, não dá”. Binha teve queimaduras de primeiro e segundo graus do joelho para baixo e numa das mãos. “Fiquei um mês e 20 dias no hospital e mais um mês em casa. Quando saí do hospital tinha um homem me encarando, que ficou bem assustado. Ele estava no celular e saiu correndo, como se tivesse medo que eu lhe reconhecesse”, relatou Binha, que por temer o retorno à cidade, congelou o sonho.

Elvis Polidoro, um dos dirigentes indígenas da aldeia lamenta a morte de Lurdesvoni, lembrando que ela faleceu e deixou as quatro filhas pequenas, que agora estão sendo criadas pela avó. Em busca de justiça, ele próprio está sob ameaça. “Os fazendeiros já mandaram o recado: qualquer dia você tomba”. A polícia ainda não encontrou os culpados.  

CONCENTRAÇÂO

Conforme a Comissão Pastoral da Terra (CPT-MS), em Mato Grosso do Sul os pequenos estabelecimentos, com até 200 hectares, correspondem a 72,08% do conjunto, mas ocupam tão somente 5,01% da área. Já os estabelecimentos com mais de mil hectares são apenas 10,18% e ocupam 76,93% da área do Estado.
Esta enorme concentração de propriedade nas mãos de alguns poucos proprietários têm provocado um recrudescimento da violência contra os trabalhadores sem terra e indígenas, além de intensa criminalização dos movimentos sociais pela mídia, que atua para encobrir os crimes do agronegócio, intimamente ligado ao capital estrangeiro, e turbinado com recursos públicos do BNDES.

Um dos graves problemas apontados pelo Tribunal foi precisamente o estabelecimento do agronegócio do eucalipto-celulose, o que transformou a região de Três Lagoas na “capital mundial da celulose”. Nesta cidade está sendo erguida, para entrar em operação ainda em 2012, a gigantesca fábrica de celulose que produzirá  1,5 milhão de toneladas por ano de celulose branqueada de eucalipto. Para o investimento de R$ 5,1 bilhões, o BNDES liberou financiamento de R$ 2,7 bilhões para a Eldorado Celulose e Papel, controlada pela J&F Participações, holding que fatura anualmente mais de R$ 55 bilhões e controla empresas como o JBS, o maior frigorífico do mundo. Para não nos estendermos sobre o naipe do negócio, vamos lembrar apenas que o ex-presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, assumiu recentemente a presidência do Conselho da J&F Participações. Conforme o próprio site do BNDES, os descomunais investimentos na nova planta criarão “mil empregos diretos e quatro mil indiretos”. 

Ao mesmo tempo em que vitamina com montanhas de dinheiro público a pujança de uma produção voltada fundamentalmente para o mercado externo, toda a microrregião de Três Lagoas sofre com a ausência de políticas públicas e de investimento do Estado nos assentamentos rurais. De forma específica, alerta a CPT-MS,  os municípios de Brasilândia, Água Clara, Ribas do Rio Pardo e Três Lagoas, com grande presença de assentamentos rurais – são dez projetos, totalizando 1.188 famílias, resistem no campo, num território de pouco mais de 35 mil hectares. A consequência quase imediata desta expansão sem limite do “deserto verde” das plantações de eucalipto tem sido a disputa territorial com a reforma agrária, “assediando, com a possibilidade de trabalho nos eucaliptais”, até mesmo os projetos de assentamento já conquistados, mais ainda não consolidados em virtude da precariedade das políticas públicas.

“Em 2011 a Eldorado Florestal acessou junto ao BNDES R$ 2,7 bilhões, enquanto o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) contou com orçamento anual de R$ 502,7 milhões”, aponta a CPT-MS, dando a dimensão do descalabro.
Para o Tribunal da Terra, é evidente a existência de um conluiou entre o Estado, o latifúndio e o agronegócio das papeleiras, num negócio que se traduz em apropriação das terras indígenas e quilombolas, contaminação de recursos hídricos e desertificação. “Reiteramos que o Estado é culpado em suas três esferas: na federal, por meio das vantagens creditícias concedidas pelo BNDES; na estadual via poder executivo, com a flexibilização da legislação ambiental e isenção de impostos como o ICMS; e municipal por meio também da liberalização de impostos, doação de terrenos e demais incentivos”. 

LATIFÚNDIO MIDIOTA

Ao final do evento, no lançamento do meu livro Latifúndio Midiota, crimes, crises e trapaças, falei que para os jornais da cidade, o evento que congregou cerca de duas centenas de pessoas numa radiante manhã de sol de domingo era não notícia. No tempo que esperava a carona do companheiro Alexandre, pude ler todos os jornais de Campo Grande. Em dois, uma matéria em destaque se repetia: grande empresário havia doado sua Mercedes Benz para uma entidade filantrópica. O título era o mesmo em dois jornais. O texto também. Mero release. Divulgação das mais medíocres. Outro falava sobre uma solenidade da Fecomércio, a Federação dos donos de lojas da cidade. E mais um dizia que o dia da mentira dividia opiniões. E o Tribunal? Que Tribunal?